sábado, 12 de fevereiro de 2011

Mecanismo de Antikythera

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Kentaro Mori
Este texto foi publicado na revista ‘Mistério‘ n.2

Por que os gregos antigos não desenvolveram uma revolução industrial? Este é um dos mais intrigantes enigmas da História, uma vez que sabemos que eles alcançaram altos graus de sofisticação em ciências como a matemática e a astronomia. Um dos exemplos mais citados do avanço da ciência grega antiga é a estimativa da circunferência da Terra por Erastótenes em torno de 200 AC. Aliando a engenhosa medida de sombras com conhecimentos matemáticos, seu erro foi de apenas algumas centenas de quilômetros.

Uma das teorias que explicaria a falha dos gregos antigos sugere que embora houvesse grandes gênios eles não existiam em número suficiente para sustentar uma revolução científica e tecnológica. Ou talvez eles não fossem desejosos de aplicar suas grandes abstrações no mundo real, quem sabe por um desprezo ao trabalho manual em uma sociedade escravagista com ampla mão-de-obra.

A teoria pareceria razoável, não fosse pela descoberta no início do século XX do mais complexo instrumento tecnológico da Antigüidade conhecido até hoje: o mecanismo de Anticitera. Este artefato isolado, como uma espécie de pedra de Rosetta da ciência e tecnologia, permite que tenhamos acesso a toda uma história que não pensávamos que realmente existia.

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Uma corbita, barco mercante em que o mecanismo de Anticitera estava quando afundou no séc I AC

Arqueologia Subaquática
A descoberta do notável mecanismo começa em 1900. O mergulhador Elias Stadiatos teve uma surpresa e tanto: a uma profundidade de pouco mais de 40 metros no mar próximo da pequena ilha grega de Anticitera, ele viu o que descreveu aterrorizado ao seu capitão como “um monte de mulheres nuas e mortas”. O que Stadiatos tinha visto deviam ser na verdade estátuas de bronze, apenas parte do magnífico tesouro que permanecera perdido por quase dois mil anos quando um navio mercante grego afundara nas águas da região.

O mais valioso artefato recuperado deste carregamento passou inicialmente despercebido. Quando retirado das águas, seria algo como uma caixa de madeira carcomida, do tamanho aproximado de uma caixa de sapatos. Devido às condições precárias, o objeto logo se desfez em pedaços, mas por outro lado isto permitiu que percebessem algumas engrenagens agora expostas, e o artefato passou a ser conhecido como o mecanismo de Anticitera.

As inscrições em grego permitiram datá-lo de forma aproximada, e tal datação coincide com a dos outros objetos encontrados nos destroços do navio. O mecanismo de Anticitera foi construído e afundou nas águas do Mediterrâneo por volta do século IAC.

Pensou-se que seria um astrolábio, contudo havia os que argumentavam com razão que as inscrições eram complicadas demais para um mecanismo assim. Ao mesmo tempo, havia os que diziam que os gregos do século I AC não podiam construir nem mesmo um astrolábio. Passariam-se mais cinco décadas até que o trabalho de restauração do mecanismo de Anticitera chegasse a um ponto em que poderia receber maior atenção, o que foi feito de forma quase heróica pelo físico e historiador de ciência Derek de Solla Price.

Estudos pioneiros
Em 1951 Derek Price foi ao Museu Nacional em Atenas analisar por si mesmo o mecanismo. Ele estava familiar com a construção de astrolábios medievais, e uma longa jornada de pesquisas começaria.

Em sua primeira publicação sobre o tema em 1955, Price situa o mecanismo de Anticitera como precursor de todos relógios mecânicos. Logo depois, em um fascinante artigo na revista Scientific American de junho de 1959, ele chama a atenção do mundo científico a diversos aspectos do mecanismo, apontando que devia ser um computador astronômico a partir das inscrições com referências ao zodíaco, corpos celestes e aos meses do ano. Estes mostradores são singulares por apresentar claras marcações periódicas, e se inferirmos a existência de ponteiros móveis, isto estabelece o mecanismo de Anticitera como o mais antigo instrumento cientificamente graduado que conhecemos.

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O mecanismo de Anticitera, como preservado hoje

Todas as mais de trinta engrenagens componentes do mecanismo original aparentam ter sido cortadas da mesma chapa de bronze com uma pequena quantidade de latão, com dentes simples compostos de triângulos com ângulo de 60 graus em todas, e portanto intercambiáveis. A partir das engrenagens, Price conjeturou que o giro de uma engrenagem motriz agora perdida movimentava todas as outras levando ponteiros a indicar o movimento de corpos celestes ao longo do tempo.

O mecanismo seria assim uma espécie de simulador capaz de indicar posições celestes em qualquer data, bastando girar uma manivela para frente ou para trás. Este giro poderia ser mesmo automatizado, representando o céu junto com um relógio de água.

A hipótese era tão ousada que se chegou a propor que o artefato teria adentrado no meio dos destroços do navio (sic) em um período medieval. De fato, por tudo que sabemos, o mecanismo de Anticitera está mais de mil anos à frente de seu tempo. Mecanismos conhecidos com grau de sofisticação similares só viriam a surgir depois do século XIII ou ainda depois. Mas novamente, uma série de evidências indica com segurança que ele data do século I AC. A hipótese é sem dúvida extraordinária, mas é acompanhada de uma série de evidências extraordinárias.
A Decodificação de Price
Mais de vinte anos depois de iniciar seu trabalho, tendo por base fotografias recentes de raios-X e raios gama do objeto, Price publicaria seu trabalho final sobre o mecanismo. Em Gears from the Greeks (1974) ele atinge a meta de decodificá-lo, propondo como funcionava originalmente.

Segundo a reconstrução conjetural de Price, o mecanismo de Anticitera era um arranjo de engrenagens criadas e dispostas para indicar as posições do Sol e da Lua de acordo com o calendário. A reconstrução revela aspectos incríveis.

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Radiografias do mecanismo

No lado científico, construir o mecanismo de Anticitera envolveu trabalhar a partir de uma série de tabelas astronômicas com precisão admirável para povos que observavam o céu sem telescópios, tabelas essas que os gregos devem ter herdado dos babilônios. Observando tais tabelas, os ciclos astronômicos se fazem mais claros.

O mecanismo de Anticitera incorporaria a razão astronômica de 254/19, o que é uma aproximação excelente do valor real, irracional, com erro aproximado de apenas uma parte em 86.000. Várias explicações podem ser imaginadas para que os gregos antigos tenham chegado a tal valor, mas a mais econômica – sem recorrer a seres extraterrestres ou descendentes da Atlântida – sugere que ao observar e mesmo compilar tabelas astronômicas eles possam ter percebido o ciclo de 19 anos de equinócios, solstícios e fases da Lua. Dezenove anos equivalem a aproximadamente 235 ciclos de fases da Lua, que por sua vez equivalem a 235+19=254 revoluções da Lua em relação às estrelas, sendo a adição derivada do fato de que há uma revolução a mais por ano enquanto a Lua gira conosco ao redor do Sol.

Aplicar a razão de 254/19 com engrenagens não é tarefa fácil, e aqui entra o notável aspecto tecnológico do mecanismo. Com engrenagens simples de eixo fixo, por mais complexos os arranjos que possamos criar, ficamos limitados a multiplicações e divisões de números. Para efetuar adição ou subtração em nosso pequeno computador mecânico, precisamos de um enorme avanço tecnológico: a engrenagem diferencial.

O uso moderno mais cotidiano da engrenagem diferencial é nos automóveis, onde ela permite que as rodas de cada lado do carro girem a velocidades diferentes, com uma distribuição proporcional da tração do eixo. Um diferencial é, basicamente, uma engrenagem de eixo móvel capaz de girar livremente entre duas outras. O movimento do eixo móvel é equivalente à metade do movimento somado das duas engrenagens em questão. Esta engrenagem diferencial teria sido inventada pelo inglês James Starley, em 1877.

Segundo Price, o mecanismo de Anticitera incorpora de forma engenhosa uma engrenagem diferencial, e é este seu aspecto tecnológico mais notável. Há relatos lendários chineses falando sobre uma “carruagem apontando ao Sul” usada em batalhas em 1000 AC ou mesmo antes. Seria um dispositivo de navegação que movido com cuidado, sempre apontava ao Sul a partir do movimento diferenciado de suas duas rodas. Tal carruagem incorporaria um diferencial, contudo evidências diretas de tal mecanismo datam apenas de 300 DC em diante. Desta forma, o diferencial do mecanismo de Anticitera também é o mais antigo diferencial conhecido de forma segura.

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Carruagem chinesa “apontando para o Sul”, que conteria um diferencial

Tanto científica quanto tecnologicamente, o mecanismo de Anticitera se revela fantástico e singular.
Especulação
Como devemos entender a singularidade ímpar deste mecanismo aparentemente mil anos à frente de seu tempo? Price já sugerira que ele é o “progenitor venerável de toda nossa pletora presente de instrumentos científicos”. No Renascimento os fabricantes de instrumentos científicos evoluíram dos relojoeiros, e a tradição de relojoaria advém de uma tradição de construção de modelos astronômicos mecânicos – sendo o mecanismo de Anticitera o mais antigo exemplo.

De alguma forma o conhecimento sobre esta linhagem importante de modelos mecânicos foi tragicamente perdido, mas os frutos da tradição em si mantiveram uma continuidade da Grécia Antiga ao mundo moderno, sendo os árabes uma ponte crucial.

A especulação é maior quanto ao uso do mecanismo simulador dos movimentos celestes. Seria um uso mais utilitário, quem sabe um auxílio na educação de jovens sobre astronomia ou seria mais um brinquedo de demonstração ou decoração em grandes monumentos ou para entreter os mais abastados? O professor Christopher Zeeman faz sugestões curiosas sobre o mecanismo de Anticitera.

Segundo ele, primeiro os astrônomos babilônicos observaram os movimentos celestes como vistos da Terra. Depois, os matemáticos gregos criaram notações e cálculos para descrever tais movimentos. Vieram então os engenheiros gregos, que criaram modelos mecânicos para reproduzir esses movimentos, sendo o mecanismo de Anticitera um exemplo. Com o auxílio de tais modelos, os estudantes aprenderam astronomia até culminar em Ptolomeu, que por volta de 150DC teria interpretado a mecânica celeste como uma reprodução literal desses mecanismos – propondo esferas celestes girando ao redor da Terra!

Os planetários mecânicos podem ter influenciado o pensamento humano por mais de 1000 anos, e o que era um simples simulador do céu como visto da Terra teria dado a sólida noção de que nosso planeta realmente estava no centro do Universo, e esferas celestes giravam ao seu redor movidas por uma complexa engenharia oculta criada por Deus.

O fato é que a mera existência do mecanismo de Anticitera torna plausível toda uma série de aparelhos descritos nos poucos manuscritos que restaram da Antigüidade e que do contrário pensaríamos ser completamente fantasiosos. Seria realmente mera lenda que Arquimedes teria repelido uma frota de navios utilizando espelhos concêntricos? Em Rodes, Filo de Bizâncio encontrou e descreveu um políbolo, uma catapulta “metralhadora” capaz de atirar em série sem necessidade de recarregamento constante, o que deve ter sido um aparelho consideravelmente complexo e se torna agora mais real que lendário.
De forma ilustrativa, podemos encontrar uma referência crucial em relação ao mecanismo de Anticitera. Em 79 AC, o orador e político romano Marco Túlio Cícero foi também a Rodes, provável cidade onde o mecanismo de Anticitera foi construído, e descreveu em De natura deorum II:

“Suponha que um viajante leve a Cítia ou Bretanha o planetário recentemente construído por nosso amigo Posseidônio, que a cada revolução reproduz os mesmo movimentos que têm lugar nos céus a cada dia e noite o Sol, a Lua e os cinco planetas. Irá qualquer nativo duvidar que este planetário era o trabalho de um ser racional?”

A descrição de Cícero pareceria fantasia, mas agora indica a existência muito plausível de uma tradição de construção de planetários em Rodes.
Reavaliação e a persistência do enigma
Pouco antes de sua morte, Derek Price notou com tristeza que o mecanismo de Anticitera teria afundado duas vezes: a primeira há dois mil anos, e então depois da publicação de seu trabalho final em 1975. O mundo acadêmico deu pouca atenção ao tema, a despeito da importância seminal do artefato evidenciada por ele.

De forma irônica, felizmente estudos recentes e idéias novas vêm sendo propostas, mas ainda que sempre reconheçam a relevância do trabalho de Price, começam justamente por reavaliá-lo.

A reconstrução conjetural de Price não dá função para algumas engrenagens, e a estimativa de dentes para diversas peças é feita para se ajustar à pré-concepção de que o mecanismo representava os movimentos do Sol e da Lua, com um diferencial. Uma das maiores engrenagens do mecanismo não encontra muito uso.

Alterando tais estimativas, é possível propor reconstruções capazes de exibir os movimentos do Sol, Lua e alguns outros planetas dos cinco conhecidos pelos gregos antigos. Especula-se que o planetário descrito por Cícero, e criado por Posseidônio, poderia ser o próprio mecanismo de Anticitera. E, por fim, o próprio diferencial é colocado em questão.

Todos esses estudos dependem agora de novas radiografias do mecanismo com tecnologias de última geração para seguirem adiante e quem sabe revisar de forma profunda o trabalho pioneiro de Derek Price. O mecanismo de Anticitera pode ter sido parte de um sistema maior, capaz de exibir os movimentos de todos corpos celestes. Sua função pode ter sido mais astrológica que astronômica – o que não seria surpresa ou um grande dissabor para os cientistas, uma vez que as origens da astronomia estão inegavelmente nas superstições da astrologia.

O que sabemos com razoável certeza é que o mecanismo de Anticitera continua um artefato singular para a história da ciência e tecnologia, com complexidade notável em pelo menos trinta engrenagens dispostas de forma cuidadosa em uma pequena caixa, com mostradores graduados de forma comparável a um relógio científico moderno.

Em seu artigo para a Scientific American, Price termina escrevendo que é um pouco assustador saber que pouco antes do declínio de sua grande civilização os gregos antigos chegaram tão perto de nossa era, não só em sua ciência, como em sua tecnologia. Isto não só permanece motivo de preocupação frente ao futuro de nossa civilização, como ainda é um verdadeiro enigma.

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Agradecimentos
Com agradecimentos aos doutores Mike Edmunds e Rob Rice pelo gentil envio de material relevante ao artigo

Saiba mais
Pesquisas recentes no mecanismo estão sendo realizadas por Tony Freeth, Allan Bromley, Mike Edmunds e Phil Morgan, entre outros. Papers de Freeth para o MAA podem ser lidos em:
http://www.rhodes.aegean.gr/maa_journal/
Uma instrutiva simulação em Java da reconstrução de Price pode ser conferida em:
http://www.mathlab.sunysb.edu/~tony/whatsnew/column/antikytheraI-0400/kyth5.html