terça-feira, 1 de maio de 2012

MILAGRES – Voltaire

thumbnail

 

 

MILAGRES


Segundo a energia do termo, um milagre é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos ao redor de um milhão de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos milagres.
Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação dessas leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante a Lua cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho levando a cabeça de baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu um milagre.

 


Vários físicos afirmam que, nesse sentido, não existe milagre algum, e eis aqui seus argumentos.

 


Um milagre é a violação das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas. Mediante essa única exposição, um milagre é uma contradição nos termos. Uma lei não pode ser mutável a violada. Mas uma lei, diz-se-lhes, sendo estabelecida por Deus mesmo, não poderá ser suspensa pelo seu autor? Têm a ousadia de responder que não e que é impossível que o Ser infinitamente sábio tenha estabelecido leis para as violar. Um homem, dizem eles, não desmonta sua máquina senão para fazê-la melhor; ora, é claro que, sendo Deus, ele fez essa imensa máquina o melhor que pode: se viu que haveria alguma imperfeição, resultante da natureza da matéria, ele a preveniu desde o começo; assim jamais há de mudar nada.

 


Demais, Deus nada pode fazer sem razão; ora, que razão poderia levá-lo a desfigurar por algum tempo a sua própria obra? É em favor dos homens, diz-se-lhes. Será, pois, ao menos em favor de todos os homens respondem eles: pois é impossível conceber que a natureza divina trabalhe para alguns homens em particular e não para todo o gênero humano; mesmo o gênero humano é pouca coisa: é muito menos do que um pequeno formigueiro em comparação com todos os entes que preenchem a imensidão. Ora, não é a mais absurda das loucuras imaginar que o Ser Infinito invertesse em favor de três ou quatro centenas de formigas nesse pequeno pedaço de lodo, o movimento eterno dessas molas imensas que fazem mover o inteiro universo?

 


Mas suponhamos que Deus desejou distinguir um pequeno número de homens com favores particulares: seria preciso que mudasse tudo o que estabeleceu para todos os tempos e todos os lugares.

 


Ele não tem, por certo, necessidade alguma dessa mudança, dessa inconstância, para favorecer suas criaturas: seus favores estão encerrados em suas próprias leis. Ele tudo preveniu, tudo ordenou para elas;
todas obedecem irrevogavelmente à forca que imprimiu para todo o sempre na natureza.

 


Por que faria Deus um milagre? Para realizar um plano qualquer concernente a alguns seres vivos!
Portanto: não pude, com os meus decretos divinos, com minhas leis eternas, preencher um certo plano;
vou mudar minhas idéias eternas, minhas leis imutáveis, e tratar de executar o que não consegui fazer por elas. Tal fato seria um sinal de sua fraqueza, e não de sua potência. Seria, parece, nele, a mais inconceptível contradição. Portanto, ousar supor que Deus realiza milagres é realmente insultá-lo (se é que os homens podem insultar Deus); é dizer-lhe: "Sois um ente frágil e inconseqüente". Portanto, é absurdo crer em milagres, é desonrar de certo modo a Divindade.

 


Insiste-se com esses filósofos, dizendo-lhes: "É inútil exaltardes a imutabilidade do Ente Supremo, a eternidade de suas leis, a regularidade de seus mundos infinitos; nosso pequeno pedaço de lodo está repleno de milagres; as histórias estão tão repletas de prodígios que estes se tornam acontecimentos naturais. As filhas do sumo sacerdote Agno trocavam tudo o que bem entendiam em trigo, em vinho ou óleo; Atálida, filha de Mercúrio, ressuscitou várias vezes; Esculápio ressuscitou Hipólito; Hércules arrancou Alceste dos braços da Morte; Éros voltou ao mundo após ter passado quinze dias nos infernos; Rômulo e Remo nasceram de um deus e uma vestal. O Paládio tombou dos céus na cidade de Tróia; a cabeça de Orfeu concedia oráculos depois de sua morte; as muralhas de Tebas se construíram por si próprias ao som das flautas dos gregos; as curas realizadas no templo de Esculápio eram numerosas, e temos ainda monumentos repletos de nomes de testemunhas oculares dos milagres de Esculápio.

 


"Citai-me um único povo no qual não se tenham operado prodígios incríveis, principalmente nos tempos em que mal se sabia ler e escrever".

 


Os filósofos não respondem a essas objeções senão rindo e dando de ombros; mas os filósofos cristãos dizem: "Cremos perfeitamente nos milagres operados em nossa santa religião; cremo-los mediante nossa fé, e não pela nossa razão, que nos guardamos bem de ouvir: porque, quando fala a fé, sabemos que a razão não deve dizer palavra. Temos uma crença firme e integral nos milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos, mas permiti-nos duvidar um pouco de vários outros; permiti, por exemplo, que suspendamos nosso julgamento sobre o que concerne a um homem simples ao qual se deu o nome de grande. Ele afirma que um pequeno monge estava tão acostumado a realizar milagres que o prior lhe proibira exercer seu talento. O pequeno monge obedeceu; mas tendo visto um pobre telhador cair do alto de um telhado, ficou indeciso entre salvar-lhe a vida e manter a santa obediência. Ordenou apenas que o telhador permanecesse suspenso a meio caminho do solo, até nova ordem, e correu de pressa a contar ao seu prior o estado das coisas. O prior absolveu-o do pecado que cometera iniciando um milagre sem licença e permitiu que o terminasse, contanto que nunca mais o repetisse. Concede-se aos filósofos desconfiar um pouco dessa história".

 


Mas como ousaríeis negar, diz-se-lhes, que S. Gervásio e S. Protásio tenham aparecido em sonho a Santo Ambrósio, que lhe tenham ensinado o lugar onde estavam escondidas as suas relíquias, que Sto. Ambrósio as tenha desenterrado e que elas curaram um cego? Sto. Agostinho estava nessa época em Milão; é ele quem nos conta o milagre: Immenso populo teste, diz em sua Cidade de Deus, livro 22. Eis um milagre dos melhor averiguados. Os filósofos dizem que não acreditam em nada disso; que Gervásio e Protásio não apareceram a pessoa alguma; que pouco importa ao gênero humano saber onde estão os restos de suas carcassas; que não concedem maior crédito a esse cego que ao de Vespasiano; que é um milagre inutilíssimo; que Deus nada faz de inútil; e se mantêm firmes em seus princípios. Meu respeito a S. Gervásio e S. Protásio não me permite ser do pensar desses filósofos: apenas registo sua incredulidade.

 


Fazem grande caso da passagem de Luciano que se encontra na Morte de Peregrino. "Quando um trapaceiro chega a se transformar em cristão, é porque tem certeza de ficar rico". Mas como Luciano é um autor profano, não deve ter nenhuma autoridade entre nós.

 


Esses filósofos não podem se resolver a crer nos milagres operados no segundo século. Perdem tempo as testemunhas oculares em escrever que o bispo de Smirna, S. Policarpo, tendo sido condenado a ser queimado, e sendo atirado às chamas, ouviram uma voz do céu gritar: "Coragem, Policarpo! Sê forte, mostra que és homem!"; que então as chamas da fogueira se separaram de seu corpo, formando um pavilhão de fogo ao redor de sua cabeça, e que do meio da fogueira saiu uma pombinha; enfim, foi necessário decepar a cabeça de Policarpo. "Que vale um milagre desses?" - dizem os incrédulos: - "por que motivo as chamas perderam sua natureza e por que o machado do carrasco não perdeu a sua? Como se explica que tão elevado número de mártires tenham saído sãos e salvos do óleo fervente, e não puderam resistir ao gume do facão? Responde-se que é a vontade de Deus. Mas os filósofos desejariam ter visto todas essas coisas com os seus próprios olhos antes de acreditar.

 


Os que fortificam seus raciocínios pela ciência vos responderão que os padres da igreja perceberam várias vezes por si próprios já não se realizarem, os milagres de seus tempos. S. Crisóstomo diz expressamente: "Os dons extraordinários do espírito eram dados mesmo aos indignos, porque então a igreja necessitava de milagres; hoje, porém, eles não são concedidos nem mesmo aos dignos, pois a igreja já não os necessita". Em seguida ele concorda em que não há mais pessoas capazes de ressuscitar mortos, nem mesmo que curem os doentes.

 


O próprio Sto. Agostinho, apesar do milagre de Gervásio e de Protásio, diz em sua Cidade de Deus: "Por que não se repetem hoje os milagres de outrora?" E ele mesmo explica as razões: "Cur, inquiunt, nunc illa miracula quae praedicatis facta esse none fiunt? Possem quidem, dicere necessaria prius fuisse quam crederet mundus, ad hoc ut crederet mundus" Objeta-se aos filósofos que Sto. Agostinho, não, obstante tal confissão, fala no entanto de um velho remendão Hipônio que, tendo perdido sua casaca, foi pregar na capela dos vinte mártires; que ao regressar encontrou um peixe em cujo corpo. estava um anel da ouro, e que o cozinheiro que fritou o peixe disse ao remendão:, "Eis o que os vinte mártires vos dão" A isso respondem os filósofos que nada existe nessa história que contradiga as leis da natureza, que a física não chega a ser abalada pelo fato de um peixe encerrar um anel de ouro e que um cozinheiro tenha dado esse anel a um remendão; que não há nisso nenhum milagre.

 


Se se lembrar a esses filósofos que segundo S. Jerônimo, em sua Vida do Eremita Paulo, esse eremita
teve várias conversações com os sátiros e faunos, que um corvo lhe levava todos os dias, durante trinta anos, a metade de um pão para o seu jantar e um pão inteiro no dia em que Sto. Antônio foi visitá-lo, eles poderão responder ainda que esse grande fato não se choca com a física, que sátiros a faunos podem ter existido e que, em todo caso, se essa história é uma puerilidade, nada tem de comum com os verdadeiros milagres do Salvador e seus apóstolos. Vários bons cristãos combateram a história de S. Simão Estilita, escrita por Teodoreto. Muitos milagres que passam por autênticos na igreja grega foram postos em dúvida por muitos latinos, da mesma forma que vários milagres latinos foram desacreditados pela igreja grega; vieram em seguida os protestantes, que maltrataram os milagres tanto de uma como de outra
igreja.

 


Um sábio jesuíta que pregou durante muito tempo nas Índias lamenta-se de que nem ele nem seus confrades jamais puderam fazer um milagre. Xavier lamenta-se em muitas de suas cartas de não possuir o dom linguístico; diz que entre os japoneses ele é como uma estátua muda. Entretanto, os jesuítas escreveram que ele ressuscitou oito mortos; é muito; mas é também preciso considerar que ele os ressuscitou há cem mil léguas daqui. Ao depois houve gente que pretendeu ser a abolição dos jesuítas na França um milagre muito maior do que os de Xavier e Inácio.

 


Seja como for, todos os cristãos convêm em que os milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos são de uma verdade incontestável, mas que se pode duvidar de todo ponto de alguns milagres feitos nos últimos tempos e que não têm uma autenticidade positiva.

 


Desejar-se-ia, por exemplo, para que um milagre fosse bem constatado, que se realizasse na presença da Academia das Ciências de Paris, ou da Sociedade Real de Londres, e da Faculdade de Medicina, assistido por um destacamento do regimento de guardas a fim de conter a multidão, que poderia, com uma indiscrição, impedir a prática do milagre.

 


Perguntou-se um dia a um filósofo o que diria se visse o Sol deter sua marcha, isto é, se o movimento da Terra ao redor desse astro cessasse, se todos os mortos ressuscitassem e se todas as montanhas se precipitassem ao mar, tudo para provar alguma importante verdade, como por exemplo a graça versátil.

 


"Que diria?" - respondeu o filósofo: - "Tornar-me-ia um maniqueu, diria que existe um princípio que
desfaz o que o outro fez".

 

- Dic Filosofico – Voltaire